H@ vida depois dos 60

…com pensamento, opinião e poesia em doses homeopáticas…

arquivos do mes de maio, 2008

Aroeira

Ninguém sabia a razão do apelido, talvez só ele mesmo o soubesse. Aroeira. Um velho negro legítimo e forte que jamais se sentara numa daquelas carteiras escolares meticulosamente fabricadas por suas mãos calejadas. Nada era seu, a madeira, o serrote, o martelo, a grosa, pregos e parafusos, a bancada da marcenaria. Assim falando, entretanto, se poderia imaginar uma fábrica de móveis. Nada disso, era apenas um barracão abandonado e lá num canto cuidado – o único lugar efetivamente cuidado do barracão, aquelas tralhas bem antiquadas, embora os equipamentos de mão como serrote, martelo, arco de pua e outros estivessem sempre limpos e brilhantes que dava gosto ver. Juvêncio o dono de tudo, desde o barracão até as tachinhas de aço, – diversas vezes oferecera a velha marcenaria ao Aroeira. Mas que nada… ele dava um baita de um sorriso banguela e dizia que não precisava coisa alguma… só que o deixassem trabalhar na fabricação e no conserto das carteiras da escola onde seus netos estudavam. Na verdade ali estudaram seus nove filhos e até sua mulher – dona Chica – fizera Mobral e se alfabetizara depois de idosa. Aroeira pregava seus pregos, apertava seus parafusos, serrava suas peças de madeira, montava as carteiras e as entregava no grupo escolar. Dinheiro nunca quis, se contentava com o muito obrigado do diretor, o professor Vitalino Cabral. Bastava o salário mínimo da aposentadoria que o Mastroiani da farmácia havia conseguido para ele com seu amigo do escritório de advocacia – o único do vilarejo. O dr. Mendes não se fizera de rogado ao pedido do amigo farmacêutico, afinal suas tres meninas haviam feito intensivo uso das carteiras fabricadas pelo velho Aroeira. E olha que foram muitos anos somados de escola. Uma era arquiteta, outra professora e a terceira jornalista na capital. Bem, mas isso nem vem tanto ao caso. O foco aqui é o Aroeira. E para encurtar a história, motivo desses garranchos, a última carteira em fabricação não chegou a ser concluída. Aroeira ali rígido, sentado na carteira sem acabamento, parecia experimentá-la com aprovação. Jorge, seu neto de 8 anos ali ao seu lado chamava-o com insistência. Vovô! Vovô! Acorda vovô! Mas qual… Aroeira viajava a bordo de sua última carteira… Daqui um tempo os estudantes do grupo escolar Dr Barros Varella Pessoa haverão de sentir a sua falta… Salve Aroeira – velho amigo da gente, referência respeitosa do lugar!

pensado por Tarciso comente

quem somos?!

me persegue a pergunta
tantas vezes respondida
sempre de forma incompleta
e ei-la aqui novamente
cheia de interrogações
mesmo depois desses anos
simulacros, desenganos
ainda não sei dizer
a resposta consentida
definitiva e perdida
no universo do meu ser
quem eu sou, afinal…
quem sou eu
quem somos nós
quem é você?!

pensado por Tarciso comente

fomes

o pão é a resposta da fome
mas depois de saciados
restam perguntas tantas
sobre a vida,
sobre a morte
e sobre o que nos consome
sou faminto nesse chão
sinto falta desse pão
pra matar a minha fome…

pensado por Tarciso comente

formigueiro

      Não é por falsa humildade que afirmo saber muito pouco entre todos os saberes, – é mera constatação. E mais, do pouco que sei, a maioria das coisas assustam ou esmagam por revelar o meu real tamanho diminuto. Formigo interiormente, formigam as minhas mãos, o sangue foge formigante nas veias. Me sinto uma formiga em lerdo movimento e vou arrastando um nada que pra mim é folha enorme tombando ora para lá ora para cá – refém do ondulante movimento ou sob o sopro de qualquer vento. Como ela, me lambuzo em doces e traço folhas verdes – mas também me diferencio pelo instinto carnívoro e soçobro à inclinação autodestrutiva me desmontando pensativo em muitas peças mentais que nem sempre se reencaixam. Isso, por vezes, faz de mim triste figura. Então suo, tremo e formigo. Mas, incansável igual a ela, vou insistindo quixotescamente e retomo a caminhada, vergado à folha da vez…

pensado por Tarciso comente

bom dia

      Quem me vê e enxerga uma imagem de pessoa equilibrada, não vê, contudo, o lastro da história que me trouxe até esse ponto da minha trajetória. Não, não estou pretendendo vitimizar-me – apenas tento utilizar um processo indutivo para chegar a uma generalidade: um retrato atual revela apenas a superfície de alguma situação ou pessoa, não é o ser de alguém que ali se encontra revelado. A busca do equilíbrio pressupõe superações, risos e lágrimas, altos e baixos. A dor eventual é um lastro a garantir um tal equilíbrio. Quem não sofreu ou não sofre alguma dor ocasional? Há quem sofra diturnamente e há até quem cultive um tanto a própria dor. Longe de mim tal escolha, o que eu procuro é o linimento apropriado para cada circunstância causadora de sofrimentos. Procuro eu mesmo ser bálsamo para as pessoas que me rodeiam. Nem sempre o consigo, é certo. Mas continuo insistindo nas tentativas. Também já não me mantenho refém da culpa pelos erros cometidos, como não sucumbo ao canto da sereia dos elogios aos eventuais acertos. Alguma sapiência adquirida com o passar do tempo me ensina que o melhor para se viver bem é viver bem um dia de cada vez. A bíblia – a melhor referência humanística que conheço – o ensina: a cada dia basta o seu cuidado. Me esforço, pois, para ter um bom dia de vida a cada vez! Que bom se o foco de ao menos um olhar iluminar-se com mais estas linhas ainda tecidas no escorregadio limiar da pieguice intimista.

pensado por Tarciso comente