H@ vida depois dos 60

…com pensamento, opinião e poesia em doses homeopáticas…

arquivos do mes de dezembro, 2011

Natalício

Natalício era um rapaz de olhar distante e vazio, esguio para conversas, mas um leão no trabalho do dia a dia. Talvez por isso – sua discreção extremada – as pessoas não o notassem muito, exceto quando faltava ao serviço e suas tarefas precisavam ser executadas por dois de seus colegas de função porque um só nunca dava conta.

Diferentemente de todos os anos em que na segunda quinzena de dezembro férias coletivas interrompiam as atividades da empresa, neste ano, por conta de um aquecimento da economia e uma enxurrada de pedidos fora de época – as ditas férias foram postergadas para a primeira quinzena de janeiro. Então, já viu, nada de folga no período natalino e reveillon.

Ninguém da empresa, portanto, conhecia os estranhos hábitos de Natálicio em tempos de festividades natalinas. Dada a sua costumeira discreção, estranharam inicialmente quando já no dia 16 ele apareceu para trabalhar com a barba por fazer – algo absolutamente inédito em se tratando de Natalício Fontoura Ramos – o seu nome completo. No dia 17, já com a barba bem evidente, para espanto geral, apareceu vestido com uma calça e camisa vermelhas, luvas brancas, além de um cinturão e um par de botas pretas. Como sempre fazia, dirigiu-se ao seu armário, pendurou no cabide suas vestes extravagantes, vestiu seu uniforme de trabalho e executou com o mesmo esmero de sempre a sua tarefa cotidiana. O mesmo aconteceu nos dias 18, 19, 20, 21 e 22 – aparecendo sempre com esse traje que beirava o ridículo, além do crescimento cada vez mais acentuado de sua barba espessa. Folgou no dia 23 porque era domingo, mas no dia 24 todo mundo achou o cúmulo quando ele surgiu na empresa com o mesmo traje berrante, um gorro vermelho e branco na cabeça, um enchimento que deixava enorme a sua barriga e um saco de cetim vermelho às costas e, detalhe, cabelo e barba totalmente pintados de branco. Era o mais legítimo dos papais Noéis.

Sussurros pelos corredores, risadas discretas e escancaradas e um chamado urgente ao Natalício para comparecer ao departamento de pessoal. A direção da empresa barrou a sua entrada naquele dia e aplicou-lhe uma severa advertência e suspensão por um dia, além da ameça de demissão por justa causa em caso de reincidência. Mas ele, aparentemente resignado e até indiferente assinou as advertências e rumou de volta para casa, a pé, cantando Jingle Bells. Na semana depois do Natal não apareceu na empresa e nem deu satisfações. Mas no dia 30 de dezembro, sua mãe compareceu no departamento de pessoal com uma procuração do filho que a enviava com a tarefa de solicitar sua demissão. O presidente da empresa, informado e inconformado com a decisão daquele excelente empregado, pediu que enviassem à sua sala presidencial a mãe procuradora.

Educadamente desejou saber o motivo da atitude demissionária e dona Nadir explicou que o filho era muito tímido e também muito sensível, embora nunca tenha reclamado e não relutasse em cumprir anualmente a promessa que ela fizera quando do seu nascimento que só ocorrera por um milagre, em vista da gravidez ultra complicada e duas ameaças de aborto espontâneo. Ela passara acamada por quase três meses antes do parto, por estrita recomendação médica. O menino nasceu com saúde bastante debilitada, na primeira hora do dia 25 de dezembro e o pai resolvera batizá-lo com o nome de Messias – e só a muito custo foi convencido a concordar com o nome de Natalício, conforme os votos que a mãe fizera em angustioso silêncio momentos antes do parto. E ela também fizera esta promessa ao menino Jesus, se crescesse como ela ardentemente desejava, todo ano ele se vestiria de papai Noel às vésperas do Natal e sairia pelas vilas e casebres distribuindo alegria e presentes para algumas de suas crianças.

Mas ela não se queixava da indiferença das pessoas em relação ao seu filho e nem da reação punitiva da empresa, até havia estranhado que tivesse durado quase 6 anos o mesmo emprego porque nos empregos anteriores ele nem sequer pedira demissão pois sempre fora demitido às vésperas do Natal.

Uma coisa era certa, sentenciou dona Nadir ao presidente, as pessoas não costumam se esforçar para compreender o que lhes parece diferente e até mesmo estúpido, mas ela tinha convicção de que seu filho era um ser humano da melhor estirpe e apesar de saber que sua condição de mãe tornava sua opinião suspeita, ela não se importava e fazia questão de externar o seu grande orgulho pelo filho Natalício. O único senão do temperamento do filho era uma intolerância para com a ignorância e o desrespeito das pessoas quando o julgavam sem o devido conhecimento de suas causas – e nisso ele era irredutível.

Mas que o presidente não se preocupasse pois no próximo ano Natalício daria um jeito de encontrar um novo emprego e pelo menos até a metade de dezembro certamente conseguiria trabalhar em paz…

pensado por Tarciso comente

palavra em cárcere

A palavra mirou abismada o infinito e desejou ter nascido grito para poder expressar o sentimento massacrado em seu ventre silencioso. Mas se sentia só uma palavra muda que jamais dizia nada e vagava reticente, ocupando ora a mente dos amantes ora o coração dos poetas, também ocupava as almas dos desafortunados, a solidão dos mendigos e a insensatez dos perigos. Em seu grande desconforto, por nunca se ouvir falada – flagrou-se enquanto expressão, palavra sem vocação, palavra desanimada.
Tanto ouvira falar do silêncio – o quanto ele era respeitado apenas por cumprir o seu silencioso papel. Mas ela, a palavra omitida, camuflada, desdenhada – palavra jamais pronunciada, nunca teria o respeito, nenhuma admiração. Só ganharia o muxoxo, pena, comiseração – oh palavra miserável, agora aqui prisioneira – por favor livra meu peito e vê se arranja algum jeito, de ser enfim proclamada…

pensado por Tarciso comente

química perigosa

Em tempos de confusão de gêneros a soma se casou com a subtração. Depois da lua-de-mel, como é comum na vida dos casais, vieram os atritos e, na tentativa de pacificar os ânimos os dois adotaram o zero como fator de equilíbrio para o casal. Já a multiplicação, estranhamente resolveu se unir com a divisão, e depois de muitas e muitas operações e noves-foras, obtiveram como herança genética o número um – para os íntimos mais pedantes – number one. Como virou moda na sociedade contemporânea, ambos os casamentos se dissolveram e os dois únicos herdeiros se somaram mas também mutuamente se surrupiaram e subtraíram aos demais e num frenesi de lucros, para mais multiplicar se dividiram, dando origem à família binária e aos reinos da Apple e Microsoft… Até aí sua malícia capitalista apenas engatinhava e nem se pode dizer que ia tão mal, mas o que eles realmente não sabiam é o quanto a descendência ia degenerar com o nascimento do google, onisciente e todo-poderoso, e também com as famigeradas redes sociais – mas isso já é um outro capítulo a ser contado mais tarde!

pensado por Tarciso (2) comentários

território abandonado

.
este blog descuidado
por boa dose de tédio
não desconhece o remédio
que o poderia curar
mas padece de preguiça
de um autor que não cobiça
mais trabalho executar
e assim se vai levando
a si próprio enganando
fingindo falta de ar
quem sabe caiba a promessa
e se alguém cair nessa
jura que não vai parar…

pensado por Tarciso (1) comentário